NA GANGORRA DAS
EXISTÊNCIAS
(JULIO GOMES)
Na minha primeira vida eu fui rocha. Mas não uma rocha qualquer, parada,
imóvel ou estática. Não fui pedra cristalina, força bruta, intocável, como um
legítimo e faustoso diamante vermelho. Mas me satisfiz como rocha mais comum,
basáltica, eruptiva, de coloração escura, de grande dureza e resistência.
Movimentava-me de tempos em tempos, com a ajuda de terremotos, maremotos e
furacões e rolava de barrancos, de precipícios, de lugares altos. Destruí, com
meu peso, muitas casas encravadas nas encostas das montanhas, muitos vilarejos
existentes nos sopés dos morros. Protegi muitas pessoas e muitos bichos da
chuva e da tempestade. Aliviei o sofrimento nas épocas das avalanches. Rolei,
rolei e rolei até me espatifar no chão e virar areia pequenininha que voava com
o vento e com a erosão. Vivi milhares de anos. Mas meu principal inimigo era a
lava da torrente vulcânica que por muitas vezes eu lutei com coragem e bravura.
Porém um dia, no final, a lava me venceu e me derreteu.
Como eu queria continuar a viver rocha!
Na minha segunda vida eu fui vegetal. Mas não qualquer vegetal de
tamanho minúsculo, feio ou raquítico. Eu era uma gigantesca planta plumosa. Um
daquelas enormes, robustas e pomposas. Ficava solitária no alto de uma montanha
esverdeada e era a rainha da natureza. Minhas raízes espalhavam-se por
quilômetros abaixo da terra. Minhas folhas, longas e grossas, balançavam
tresloucadas durante as ventanias, num ritmo alucinante, numa dança maluca, num
pacto de amor profundo entre as moléculas de ar e as minhas paredes celulares.
Minhas flores, respeitavam todas as cores e iluminavam os dias e as noites.
Eram coloridas de um misto de verde e lilás. Meus frutos, saborosos apenas para
os animais, causavam doenças mortais para os homens ousavam me desrespeitar e me
comer lhes comer. Meus galhos, términos de meu caule, sustentavam espinhos
finos e pontiagudos que, igualmente deletérios, fustigavam a todos que me
queriam derrubar. Zurzi aqueles muitos que tentavam comer meu fruto
indistintamente ou subir em meu corpo feito de madeira de sândalo. Vivi
centenas de anos. Mas um dia um maldito trator enferrujado passou por cima mim
e me esmagou.
Como eu queria continuar a viver planta!
Na minha terceira vida eu fui bicho. Mas, dessa vez, por algum motivo,
eu não fui tão grande, belicoso ou feroz. Pois então nasci sutil, corpo
semiesférico, cabeça pequena, seis patas curtas, duas antenas. Tinha asas
membranosas, com carapaças quitinosas, estilosas e bem desenvolvidas, bem
coloridas, vermelhas com pontinhos pretos. Era um inseto coleóptero da família Coccinellidae.
Tinha lá meus cinco centímetros e com o tempo descobri que era um tipo de
besouro e que as pessoas que me viam me chamavam carinhosamente de Joaninha.
Vivi quase 150 dias, voando pelas paredes das casas, pelos matos ciliares de
rios caudalosos, observada por casais apaixonados que suspiravam juntos ao me ver
caminhando lentamente pela superfície das pontas das rosas híbridas em jardins
iluminados. Corria de meus predadores terríveis e maus. Zunia de sapatos
indelicados e desatentos. Mas acabei sendo pego por um inseticida agourento.
Como eu queria continuar viver bicho.
Na minha quarta vida eu fui ser humano. Nasci Maria Aparecida. Um Milagre! Com um
ano de idade mordi minha mãe. Aos dois anos, mamei com dificuldades. Aos três,
andei e cai inúmeras vezes. As quatro, quebrei o dedo da mão. Aos cinco tive pneumonia,
diarreia, anemia, desnutrição. Aos seis, falei sem parar: aprendi vários
palavrões. Aos sete, roubei uma bicicleta de um amigo. Peguei no pênis do meu
primo. Aos oito, já gostava de beijar. Quebrei o braço brigando na rua. Aos
nove, vi minha mãe, uma eximia madame, ser violentada. Furei a orelha. Tentei
fugir de casa. Aos dez, senti muito medo do mundo. Aos onze, conheci meu pai,
presidiário. Aos doze, já satisfazia os amiguinhos da rua. Aos treze, quebrei a
perna e a bacia andando de moto. Engravidei. Tive meu primeiro filho: Muriel.
Aos quatorze repeti, de novo, o ano na escola. Aos quinze dancei na festa. Aos
dezesseis tive o seu segundo filho: Miguel. Aos dezessete, o terceiro: Rafael.
Aos dezoito sai de casa. Aos dezenove fiz programas, virei meretriz. Aos vinte,
quebrei o nariz. Tirei foto em um chafariz. Arrumei um outro emprego. Foi
demitida logo cedo. Tive dengue. Depois uma nova pneumonia. Vinte e um me
converti. Todo domingo estava na igreja. Vinte e dois, casei. Linda de vestido
longo, amarelo, véu e grinalda como nos filmes. Vinte e três tive o quarto
filho: Manoel. Tive complicações no parto. Entrei em coma. Nuvens brancas me
rodeavam. Na minha frente Deus, transfigurado numa antiga máquina de fazer
sorvetes, falava comigo sobre planetas, marmelada e futebol. Voltei à vida aos
cinquenta e vivi cuidando dos filhos e dos netos e dos bisnetos até os cento e
dez anos de idade. Retornei aos céus numa noite quente quando dormia solitária,
abandonada, num quarto úmido nos fundos de um asilo.
Como eu queria continua a viver
humano.
Na minha quinta vida eu fui máquina. Voltei triunfante. Tinha a força
elétrica perpassando pelos meus fios envoltos pelas minhas estranhas. Não tinha
mais sangue. Mas pensava, raciocinava, alegre e feliz, como antes. Sabia de
minhas funções e de minha missão. Novamente tinha asas, mas agora feitas de aço
e ferro. Eu tinha um tanque cheio de gasolina que alimentava minhas energias.
Era sempre pilotado por controle remoto. As vezes ia sozinho com minha própria
inteligência artificial. Dessa vez eu era um jato, tipo drone, da
esquadrilha dos bombeiros. Era todo vermelho, brilhoso. Feito exclusivamente
para salvar vidas em locais de difícil acesso. Ia e voltava trazendo gente de
hospital, gente acidentada em locais perigosos, nos imprevistos nas estradas,
nos prédios que pegavam fogo. A vida era minha relíquia, meu objetivo, meu
vício. Salvá-la era tudo para mim, de todas as formas que eu pudesse. E assim
eu fiz. Vivi centenas de anos sendo remodelado, restruturado a cada atualização
da tecnologia e do sistema. Até que minha vida útil acabou. Fui jogado num
armazém fedorento e escuro como uma carcaça abandonada. Por lá fiquei esquecido
por muitos anos enferrujando lentamente. Até que fui descoberto novamente e
acabei por ser triturado numa fábrica de reciclar.
Como eu queria continuar a viver máquina!
Na minha sexta vida, que agora eu vivo, sou um corpo celeste. Sou um
tipo de estrela cadente, fugaz. Observo do alto cada um de vocês. Seus vícios,
seus medos, suas angustias, suas traições, suas guerras, suas invenções. A
noite sou tão brilhante como de dia. Sou a mais bela das estrelas do espaço,
desse universo que vos cerca. Permaneço grande, imenso, do tamanho de uma lua,
deveras iluminada. Viajei por velocidades indizíveis, por grandezas quânticas
inenarráveis e passei por portais dimensionais de tamanhos de milhares de sois.
Amo as anãs azuis. Admiro as gigantes vermelhas. Tenho uma paixão secreta pelos buracos
negros. Viajei a quilômetros por hora pela via láctea. Adentrei ao vosso
sistema solar atraindo planetas, satélites, luas e orbitas sem precedentes.
Aqui, no infinito colorido, o etéreo é impossível e palpável diante daquilo que
não tem nenhum sentido. Em algum momento virei asteroide. Agora, viajo
indistinto e interminável, inevitável, em direção ao vosso planeta. Viajo com o
único e pleno objetivo de restabelecer o conflito natural e destituir a velha
ordem. Trago o fim pela subversão da parte mais bela da existência: a vida.
FIM